O recente julgamento do STJ, que trata da absorção do crime de porte ilegal de arma de fogo pelo tráfico de drogas, é um tema que suscita amplas discussões no campo jurídico e social. Embora a decisão tenha uma base teórica no princípio da consunção, há reflexos diretos sobre a percepção de justiça, segurança pública e o papel do direito penal em garantir a ordem social.
A Decisão e o Princípio da Consunção
O princípio da consunção, utilizado como base para justificar a absorção do crime de porte de arma pelo tráfico, busca evitar a punição em duplicidade quando uma infração é considerada meio necessário para a execução do crime principal. Em teoria, a decisão faz sentido: se a arma é usada exclusivamente como ferramenta para assegurar o tráfico de drogas, o tráfico é tratado como o crime central, englobando o porte de arma.
Porém, ao transpor essa lógica para a realidade brasileira, surgem questionamentos. Afinal, o porte ilegal de arma, em qualquer circunstância, também é uma infração autônoma que compromete a segurança pública. A flexibilização no tratamento jurídico pode ser interpretada como uma suavização para quem está envolvido no tráfico de drogas, uma das atividades mais danosas à sociedade brasileira. Isso, por si só, já levanta um dilema ético: até que ponto priorizar princípios técnicos do direito sobre o impacto prático dessas decisões no cotidiano das comunidades afetadas?
O Cenário de Segurança Pública e o Porte de Armas
A decisão do STJ reflete não apenas questões técnicas do direito, mas também as profundas desigualdades do Brasil. Enquanto as populações mais vulneráveis convivem diariamente com a violência promovida pelo tráfico e pela ausência do Estado, as normas rígidas contra o porte de armas para o cidadão comum reforçam a sensação de desproteção.
O Brasil tem uma das legislações mais restritivas do mundo quando o assunto é armamento civil. A justificativa é que menos armas em circulação resultam em menos violência. Contudo, a prática demonstra o oposto: criminosos estão fortemente armados, enquanto o cidadão comum, que busca proteção, encontra uma barreira quase intransponível na legislação.
Esse contraste revela uma triste ironia: enquanto o porte de arma é relativizado para traficantes em julgamentos como esse, o cidadão de bem permanece refém de uma legislação que desconsidera sua realidade. O resultado é um ciclo vicioso em que os mais fracos são os mais desprotegidos, e o sistema, ao invés de equilibrar as forças, parece desequilibrá-las ainda mais.
O Papel dos Especialistas e a Complexidade da Discussão
Um ponto que agrava essa situação é o excesso de vozes “especialistas” que, muitas vezes, complicam ainda mais o debate público. No Brasil, existe uma tendência a transformar questões práticas em discussões tecnocráticas, onde princípios jurídicos ou ideológicos se sobrepõem à realidade vivida pela população. O discurso de especialistas muitas vezes se torna alienado, ignorando o impacto das decisões sobre a vida real.
Por exemplo, no debate sobre armas, muitos especialistas argumentam que mais armamento civil aumentaria a violência, usando dados de outros países para sustentar suas posições. Contudo, ignoram o fato de que o Brasil já é um dos países mais violentos do mundo, mesmo com uma legislação extremamente rígida. É difícil entender como a população comum, proibida de se armar, pode ser responsabilizada por um cenário que é, claramente, fruto de uma criminalidade descontrolada e de um Estado ineficaz em prover segurança.
Esse tipo de discurso, desconectado da prática, não só desvirtua o debate como também afasta soluções concretas. Enquanto a teoria se alonga, a população continua sofrendo. Criminosos, por outro lado, não enfrentam nenhuma barreira para acessar armas — algo que a decisão do STJ, paradoxalmente, acaba reforçando ao minimizar a autonomia do porte ilegal de arma como crime.
Reflexão Final: Uma Justiça que Perde o Sentido
A decisão do STJ pode até ter embasamento técnico, mas ela revela um sistema que muitas vezes prioriza princípios abstratos em detrimento de valores concretos como segurança e justiça. O cidadão brasileiro, já sobrecarregado pelas falhas do Estado, encontra-se indefeso, tanto pela presença constante da violência quanto pela ausência de mecanismos legais para se proteger.
Mais grave ainda é perceber que, no centro dessas discussões, muitas vezes o interesse da população fica em segundo plano. O debate se perde em teorias e opiniões desconectadas da realidade, enquanto o traficante segue armado e o cidadão de bem continua desarmado, refém de um sistema que parece existir apenas para manter o status quo.
O Brasil precisa urgentemente rever sua relação com o armamento civil, compreendendo que uma sociedade mais justa não é necessariamente uma sociedade sem armas. É uma sociedade onde o equilíbrio de forças permite que o cidadão comum não seja esmagado pelo peso de um sistema que, na prática, o deixa sozinho para enfrentar seus maiores medos.